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Título:
DE TUDO UM CONTO
Autores: Cíntia Moscovich (organização e apresentação),
Cristiane Costi e Silva, Graziela Feijó, Inês Lempek, Márcia
de Lima Canez, Maria Graça Pinto Ferreira, Martha de Moraes
Coelho e Sinara Foss
ISBN:
978-65-998288-0-5
Formato: 14 x 21 Páginas: 78 Gênero: Contos
Publicação: Bestiário, 2022
As sete gurias que contam
Cíntia Moscovich
Durante a pandemia, o medo fez
com que muitos de nós paralisassem a vida. O anúncio da
morte a adejar, a incerteza e a crueldade, tudo isso fez com
que recuássemos e nos resguardássemos — e se sabe que o medo
não é o melhor lugar para a criação. Um grupo de sete
mulheres — de gurias, melhor dito — não se contentou com
andar sem criar ou construir. Atendendo a meu convite, eu,
que sempre tive medo de parar, conseguimos fazer aulas
on-line, descobrindo literalmente juntas o que era o tal
Zoom, como funcionavam os quadradinhos, como podíamos ficar
juntas mesmo separadas. Foram meses de discussão, de trocas,
de dúvidas, de conversas (e de risadas). O resultado amoroso
daqueles encontros, e de tantos outros que as gurias
decidiram manter por conta própria, pode ser conferido aqui.
Devo agradecer a elas por me manter viva e desperta e porque
me emprestaram o enorme talento demonstrado nas páginas que
se seguem, elas que são enormes de vocação de vida e de
energia. Cada uma de seu jeito, todas elas prontas a contar
vários contos.
Cristiane Costi e Silva tem o dom da observação e de
transfigurar o que era impressão em linguagem, virtudes que
a fazem transcender a simples promessa — ao menos é o que se
diz de autores estreantes. Com uma sensível veia poética,
ela conta a história térrea desta mulher que, na praia,
deitada de bruços na areia, vê o mundo passar. Depois, há a
devotada história daquele jardineiro que tem que se despedir
da patroa-amiga a quem tanto se dedicou por anos, e é uma
das coisas mais belas que o leitor poderá ler em muito
tempo. O desfecho de seus textos é a narrativa sobre o
encontro de dois jovens que se haviam conhecido por internet
e que resolvem se ver pessoalmente no Posto 5, no Rio, que
tem um andamento trepidante e um desenlace digno das
melhores histórias de suspense.
Graziela Feijó aposta naquilo que talvez seja a tarefa mais
difícil para quem escreve: o humor. Os contos que ela
apresenta são pautados pela graça e pela ironia mais
profunda — a do olhar de uma mulher, e ainda mais de uma
mulher enfastiada com o dever social que cumpre meio a
contragosto —, tudo com uma elegância digna de nota. O
segundo conto da série se ocupa daquele sujeito que, ao
despertar, não se reconhece — mesmo — e, à maneira de Kafka
e de Cláudia Tajes — da Cláudia Tajes que entabulou um
diálogo com Kafka —, entende que uma metamorfose
estranhíssima ocorreu. E há, para encerramento, o olhar
apaixonado da mulher que entende que tudo deu certo, de uma
beleza simples e serena.
Inês Lempek, que é também poeta, tem uma escrita suave, com
delicadezas que levam a subentendidos muito potentes. O
primeiro trabalho de sua série, a história da menina que
deve buscar ovos no galinheiro, é todo ele filigranado em
doçura, o mesmo cuidado com a linguagem que tem a personagem
ao se dar conta (e virar cúmplice) do milagre da vida. Inês
também apela aos sentidos do leitor ao se valer de uma
paleta de cores intensa e muito viva, que vibra em ação. Ao
encerrar, no terceiro texto, conta uma história de amor
daquelas que envolve paciência e compreensão e que levam,
via de regra, a um desenlace nem tão feliz assim — como é o
caso.
Márcia de Lima Canez tem uma prosa torneada à exaustão:
percebe-se que busca a palavra justa e precisa à outrance.
Com temas ousados, como o desejo e tentação da infidelidade,
e justo partindo de uma mulher que vive numa conservadora
colônia de imigração alemã, sua narrativa é sedutora e muito
envolvente — e o mesmo se pode dizer do texto em que uma
jovem mãe, desiludida, deve lidar com o filho especial, que
nunca lhe deu os prometidos prazeres da maternidade. Márcia
encerra seu tríptico com a misteriosa história do novo e
milagroso ungido que toma muita cerveja e que pode caminhar
sobre as águas.
Maria Graça Pinto Ferreira é toda elegância em sua prosa que
flui com suave intensidade. Contadora de histórias nata —
quem convive com ela sabe que sempre brinda a todos com
alguma narrativa divertida e curiosa —, Graça não deixa
faltar a essencial solidariedade no texto que abre seu turno
(muito menos nos demais). Como em Márcia (aliás, ambas são
da gloriosa cidade de Pelotas), Graça também conta a
história de uma infidelidade, mas com um desfecho desses
tremendos e, dadas as circunstâncias, inevitável. Para
encerramento, a autora narra, com toda a miséria e
humilhação, o acidente com um homem obeso no centro de Porto
Alegre.
Martha de Moraes Coelho tem a apego aos cenários e aos
objetos que contam histórias. No grande universo dos
símbolos, Martha evoca significações e, com elas, enredos
que superam as aparências. No entanto, é num conto em que o
suspense vai se montando lentamente, quase como num
thriller, que o clima de quase terror se estabelece e,
como na vida, o que restam são dúvidas e ameaças que parecem
eternas. Ao final, mudando completamente o tom do que vinha
contando até então, um homem passa por um grande desconforto
e já não sabe se o mal-estar que sente lhe vem da companhia
infeliz que tivera ou da bebedeira a que se dedicou.
Sinara Foss tem uma fabulação incessante e muito divertida.
O primeiro conto que ela oferece ao leitor é uma maravilha
de enredo e de maneira narrativa: aos poucos, ficamos
sabendo que uma metamorfose — e a alusão a Kafka, a segunda
dentro do livro, não é só coincidência — está em curso e que
estancá-la está fora de qualquer possibilidade, humana ou
vegetal. Um texto dentro do texto dá sequência ao conjunto
dedicado à autora, que numa excursão à metalinguagem,
elabora um conto sutil e triste. Encerrado a coletânea,
Sinara oferece ao leitor um texto cheio do nonsense
da própria perda e da própria tristeza do luto, final
arrebatador para um conjunto de textos simplesmente
excepcional.
Essas são, num resumo muito resumido, as autoras que
surgiram em meio ao caos e ao medo, e porque a arte
transcende o medo e porque o talento ultrapassa o caos, elas
já sabem que nada as deterá. Só há um caminho para cada uma
delas: longa vida e sucesso. |