R$ 30,00

Título: DETENDO O VENTO
Autor: Markéta Pilátová

ISBN 978-85-94187-35-2

Formato: 12 x 18 cm.
Páginas: 60
Gênero: Poesia
Publicação: Class, 2018

Percorrer o mundo
com os olhos ávidos pela poesia da vida

Gabriela Silva

Em seu livro O arco e a lira, Octavio Paz, fala do que consiste a poesia:

A poesia é conhecimento, salvação, poder, abandono. Opreação capaz de mudar o mundo, a atividade poética é revolucionária por natureza; exercício espiritual, é um método de libertação interior. A poesia revela este mundo; cria outro. Pão dos escolhidos; alimento maldito. Isola; une. Convite à viagem; retorno à terra natal. Inspiração, respiração, exercício muscular. Prece ao vazio, diálogo com a ausência: o tédio, a angústia e o desespero a alimentam. Oração, ladainha, epifania, presença. (2002, p.21)

Universo de possibilidades para além do nosso mundo cotidiano, a poesia é uma fonte inesgotável em que mergulhamos na busca da revelação oferecida pelas metáforas criadas pelo poeta e o engenho e potência da palavra poética que ele se utiliza para criar as imagens que compõem o poema. Ao lermos um poema, edificamos o fazer lírico do poeta, revelando para nós mesmos o segredo de cada verso.
Toda essa ideia sobre o que é poesia, na definição de poesia de Paz, aqui resgatada, serve-nos para falar do livro de Markéta Pilátová: Detendo o vento. Há em seus poemas, para além da ideia da epifania e do sentimento que nos é despertado quando lemos seus versos, a revelação de um sentido mais profundo em cada imagem criada pela escritora. Nascida em 1973, na República Tcheca, Markéta não é poeta, é ficcionista. A construção dos versos que compõem este livro deu-se por uma feliz coincidência. No entanto, cada poema resgata do imaginário tcheco e da memória pessoal da escritora uma série de paisagens, personagens e sentimentos que formam uma poética alheia ao fato dela ser ou não poeta.
A questão lírica, a poesia, o sentido de canção que acompanham a leitura dos poemas levam o leitor a pensar a obra de Markéta, pelo ideal de “exercício espiritual” denominado por Octavio Paz. O espaço poético delimitado é o entre-lugar entre os países da América Latina em que morou e desenvolve o seu trabalho de professora de língua e cultura tcheca e o próprio imaginário de seu país de origem. As imagens, as sonoridades, os efeitos e sensações mostram-nos que sua poesia é “pragmática”, ela decorre da assimilação de Markéta desses muitos lugares.
“Cobra Branca” poema que abre o livro Detendo o vento, resgata a imagem da lenda da Cobra Branca originária do país de origem de Markéta. Nos versos, a lenda ganha sonoridades e repetições, cadenciando a fábula e tornando-a quase uma canção para o leitor. O poder sibilante da cobra, as sensações e imagens trazidas pela escritora, colocam-nos dentro das plantações, em meio a castanhas e raízes, onde a Cobra Branca habita, e esperamos por beijá-la também.
O movimento da cidade, os olhares pelos corredores cegos, são o cenário de “Babalu”, poema que evoca a imagem feminina de uma prostituta: “Sedutora Babalu, / que mostra os antigos encantos na beira da esquina.” Essa mesma figura, preocupa-se em aquecer o coração daqueles que a procuram, que desejam sua carne barata e ao mesmo tempo aquecida para preencher o vazio de suas próprias solidões. Babalu ama do modo antigo, diz-nos o sujeito poético dos versos de Marketa, e é essa a sensação que temos ao ler o poema, de que tudo fica demasiado devagar.
“Onda morta onda viva” é um poema que recorre a uma série de imagens que preenchem um campo semântico ligado ao mar. A “catadora de conchas” pertence ao entre-lugar marítimo e terrestre, expande-se por entre as ondas, os tabiques de petróleo, as correntes das águas do mar e o próprio hálito do mar a constituem. A onda que embala a figura central do poema de Marketa, conduz o ritmo dos versos: o ir e vir da vida, da morte e do sonho.
De “Tatiana” emergem as fotográficas imagens da cidade, e a memória do eu lírico dá-nos a sugestão do sentimento de medo, do desejo do sonho e da angústia de estar num labirinto de concreto que ao mesmo tempo é casa e prisão: “ A cidade selvagem./Brava porque tudo se move,/de uma luz para a outra,/o circuito fechado,/de novo e de novo.” No movimento contínuo da orgânica cidade, Tatiana se desloca entre sua própria vida e o pó, a ralé e o medo.
A cidade também é uma imagem recorrente em “Numa cidade das cidades” poema que tem como cenário Buenos Aires. A morte, os habitantes da cidade que vagueiam e dormem na rua, a imensidão de cada noite que abriga os mais variados tipos, envolve também o menino que dorme no metro, Dolfina e a herança de ser as mulheres todas de sua família em uma só, tudo emerge da cidade representada no poema de Markéta. Uma cidade que pulsa em desordem, em vida e em sonho.
“A gaiola da noite” traz em seus versos a ideia do medo, da escuridão que tudo esconde e da morte. A noite que aprisiona as figuras do poema de Markéta expande-se entre o sono, a paixão, e a fragilidade da vida. As palavras do eu lírico, são também o elo entre o mundo externo ao poema e a própria matéria que o constitui.
A suspensão do tempo e a imersão num outro espaço são oferecidos ao leitor em “El Dorado.” O poema explora um conjunto de imagens que nos coloca no centro dos sentimentos do eu lírico, que observa um mundo em que nem o vento se movimenta, em que não se leem novelas de amor e nem se desconfia dos tons da escuridão. Essa mesma escuridão, amálgama de sonho e de medo é o tecido do amanhã.
A imagem tropical de “Longos cabelos das palmeiras” é como o embalo de um sonho para eu lírico, que lê o Livro dos Sonhos e une-se à morte e ao sono ao mesmo tempo. O cenário onírico, entre-lugar da realidade e desse sono, configuram-se nas imagens das folhas das palmeiras, “Longos cabelos das palmeiras/caindo no travesseiro”, conduzem ao leitor ao momento do tenro sonho que nasce do repouso da vida.
As imagens são o ponto de voragem do poema “Neste dia chuvoso”: o pecado que se mostra ofertivo num dia de chuva; a estrela vermelha, a mulher negra de preto e o fio de prata; e por último, a mulher que bebe. A princípio, figuras isoladas, mas que no âmbito dos versos de Markéta são os vórtices de um espaço que oscila entre a vida e a morte. A estrela, o santo, a mulher negra de preto, figuram como elementos do fantástico, do mundo para além do nosso, enquanto a foice – elemento associado à morte – corta o fio de prata, metáfora ancestral da própria vida e da ligação dos homens a entidade divina, provedora da vida. A mulher que bebe, imagem dos versos que compõem a parte final do poema, é construída a partir da ideia da dor, da solidão e do sonho. Sorver a bebida é como, novamante estar nas montanhas, no coração da terra, enquanto a vida na cidade, oferta as imagens de putas, passantes e a “vagante que mistura os passos da dança aos trocos de moeda.” Três diferentes momentos de um mesmo poema que emoldura as dicotomias: desejo e pecado; vida e morte; cotidiano e solidão.
“Detendo o vento” poema que nomeia o livro, é também aquele que fecha a sequência de poemas escritos por Markéta Pilátová. O versos monstram o desejo de um eu lírico que migra para uma determinada direção como quem retorna à própria casa. O vento, detido pelo viajante, traz consigo a ideia do vento e do primeiro amor, um dia devolvido ao mundo, expurgado do corpo, da própria alma. Como pássaros brancos que migram em busca de um lugar seu, ainda que por pouco tempo, ou por uma estação da vida, o eu lírico segue seu percurso, retornando para seu espaço de pertença, e que tem por testemunha o vento.
As imagens construídas por Markéta oscilam entre a delicadeza do beijo da cobra branca, das folhas de uma palmeira, em longos cabelos metaforizados ou o vento que conhece a origem do viajante à brutalidade do cotidiano citadino, em que a prostituta procura se aquecer do frio enquanto vende sua carne e seu amor e a inimência da morte, tão próxima do sono e do sonho. Os poemas da escritora lembram-nos dos versos de Alberto Caeiro, heterônimo de Fernando Pessoa: “pensar é estar doente dos olhos”, pois que é preciso sentir o mundo, o devir do que entendemos como cotidiano. Antes da poesia, está essa experiência de observar o que existe a volta do poeta. Em algumas de suas criações poéticas as imagens construídas são arrebatamentos em que as sensações como o frio manifestam-se de modo singular ao leitor, convidando-o a entrar na história do poema. Em outras, o olhar do eu lírico transforma-se numa quase lente fotográfica em que as as figuras captadas parecem movimentar-se nos versos: transitam entre o mundo real, de onde foram recortadas e a imaginação da poeta, que as emoldura com o seu imaginário.
Octavio Paz, a que recorremos no início deste percurso pelo livro de Markéta nos diz também que: “As imagens do poeta têm sentido em diversos níves. Em primeiro lugar possuem autenticidade: o poeta as viu ou ouviu, são uma expressão genuína de sua visão e experiência do mundo. (2002, p.113)”. Jorge Luís Borges também evoca a ideia das imagens e da poesia que delas pode surgir a qualquer momento: “ A poesia não nos é alheia – a poesia espreita, como veremos, a cada esquina, pode saltar-nos em cima a qualquer momento.” (2017, p.10). E este é o ofício do poeta, ainda que não o pretenda sê-lo: trazer o mundo em palavras e metáforas. E é um trabalho difícil, pois que a poesia exige do poeta atenção às palavras que o procuram, que desejam a poesia como morada. A missão do poeta, diz-nos ainda Paz, é atrair essa força poética como um cabo de alta tensão, em que seja possível a “descarga de imagens”. O poeta, está a serviço da palavra, da poesia e do seu desejo de entregar-se ao mundo, por isso ela espreita o poeta, como nos diz Borges.
Permeados por uma musicalidade e ritmo que nos embalam além das palavras, os versos da escritora, contam-nos pequenas narrativas que apresentam o mundo por diferentes lentes ( as imagens que viu e ouviu, como nos lembra Paz): a viajante Markéta, que conhece diferentes culturas e suas histórias; a menina que traz na sua memória as lendas e os espaços de sua terra natal e a escritora que busca as palavras exatas que irão compor um universo poético em que as metáforas estão vivas e as imagens destacam-se dos versos, chamando-nos à epifania e à lucidez de quem percorre o mundo com os olhos ávidos por boas histórias e pela própria poesia da vida.