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Título: CADERNOS DE DULCINÉIA
Autora: Adriana Bandeira

ISBN: 978-65-6056-037-6

Formato: 14 x 21
Páginas: 84
Gênero: Contos
Publicação: Bestiário, 2024

Dulcinéia e todas nós


Quando este Cadernos de Dulcinéia veio parar em minhas mãos e em minha leitura, de pronto chamou-me a atenção a riqueza de forma e conteúdo que os contos, minicontos e poemas apresentam: Adriana Bandeira escreve aqui uma prosa poética singular, ela que bem entende disso, sendo poeta, e traz para nossa reflexão uma mulher vária e doída, às vezes raivosa, outras vezes amorosa, muitas vezes silenciada.
Miguel de Cervantes criou o fidalgo Dom Quixote de la Mancha, que, enquanto vagueia pelo mundo, faz-se imaginariamente acompanhar pela dama Dulcinéia, a quem ele vê, em seu delírio, como a mais bela e afável mulher.
A Dulcinéia de Adriana, ao contrário, é mulher real, inteira na luta do dia a dia ou na luta da noite, prostituta que é. Possui forte imaginação e vida “de dentro”, como a autora refere-se ao mundo interior de suas personagens.
Veja, leitor, a beleza que já se descortina no primeiro conto do livro, Roupa Suja: enquanto estende, de dia, suas roupas de receber clientes, a mulher reflete: “Eu estendendo as fantasias de servir. E sirvo bem à noite. O dia é para não fingir”. Sem tardar, no mesmo conto, há referência a Dom Quixote, quando a personagem conta do cavaleiro andante que se aproxima de sua janela, pedindo desconto. O outono do tempo absolve-a por negar o pedido. É assim que se percebe estarmos frente à mulher madura em suas vivências.
E por falar em outono, as estações do ano perpassam as narrativas, especialmente a primavera; as estações e a condição humana interligadas.
A Dulcinéia é uma e são várias e a/as vemos lavando roupa, cozinhando, esfregando panelas e deixando filha na creche às 7h30 para apanhá-la de volta às 19h, e o patrão passa de carro e não a vê subindo a lomba ou sob a chuva (O que sobrou de nós). No microconto Cotidiano, a personagem tem mãe que bate e pai que machuca. A filha, quando ferida pelo pai, diz que a mãe fica boa nessas horas. E comenta “e mãe boa é bom”, evidenciando a carência do afeto materno e paterno, o cotidiano de um ser fustigado. Chega a doer.
É comovente acompanharmos os passos dessas Dulcinéias. Adriana contempla diversos temas, como o sexo profissional, o sexo virtual, o amor homossexual, o pregador estuprador, o instagram e as vidas enganosas das fotos postadas. Ao mesmo tempo, traz a conversa com os pássaros, a memória do fascínio pelos balões, “com eles acompanhava um sem-fim de movimentos...” (Para le ballon rouge/1956) , o erotismo, a guerra, os aprisionamentos, o desterro.
A mulher aqui é sobrevivente e invisibilizada, mas deseja: “E seguiu, a doce fera solta, a mulher no seu desejo” (A doce fera), ou “E junto disso um vento de andar nua e poemas sobre como deixar de ser tua” (Poemas).
Bela é a linguagem de Adriana Bandeira. A poesia que se insinua nos contos e poemas é de primeira grandeza: “Não sei em que tempo abrem-se os sonhos nesta vida mansa, morta, medonha. Não sonho mais” (Feliz ano novo, Lurdinha!). E, ainda: “E eu rio em correnteza, nascentes, vertentes. Eu rio!” (Quando faltei na parede de fotografias).
Há, também, paródia da linguagem bíblica, no bem achado título Do pô viemos, ao pô voltaremos!, em que a personagem questiona o fim da vida.
Caro leitor, Cadernos de Dulcinéia tem isso e muito mais. Nem mesmo citei as personagens masculinas, mas quem ler verá que a autora dedica também seu olhar ao homem, como no conto Frágil macho ou em Dom, que, não por acaso, assim se chama.
Vislumbro múltiplos significados e significantes nos textos, o que possibilita leitura intensa a cada vez.
Fico me perguntando quão profundamente a fruição de Dom Quixote de La Mancha, o cavaleiro andante, e sua fantasiosa Dulcinéia terão mexido com os sentidos de Adriana, levando-a a nomear da mesma forma sua personagem feminina. A donzela dos cadernos é mulher de carne e osso, tocante em seu desamparo e em sua fortaleza. É um pouco de todas nós.

Cristina Macedo
escritora, poeta.

Sobre a autora:
Adriana Bandeira é psicanalista, gaúcha, tendo três livros publicados: "Chá das cinco", editora AGE, 2006; "Escritos de calabouço", editora Patuá, 2018; "Cartas trocadas" em parceria com Jorge Rein, editora Bestiário, 2022; "As mil e uma noites de Dom Quixote", editora Bestiário, 2022.