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Título:
O DUQUE DA SENZALA Autor: Valdomiro Martins
ISBN : 978-85-94187-80-2
Formato: 14 x 21 cm.
Páginas: 160 Gênero: Romance Publicação: Class, 2019
Há personagens que se impõem à
imaginação como sonhos, pesadelos ou delírios. Outros, como
seres fantasticamente reais, por longo tempo escondidos nos
meandros do mundo, aguardando o momento de saltar às páginas
e impor-se à ordem das coisas - para então surgirem à nossa
frente, dizendo, como a sarça em chamas, eu sou o que sou.
Esses personagens não são fantasmas, nem monstros, nem
deuses, mas exemplares de pungente humanidade,
apresentando-se de forma tão verossímil e poderosa que, às
vezes, parecem até mais reais que nós mesmos; e o que há de
fantástico em sua aparição é que sentimos reconhecê-los
profundamente, como se estivessem entre nós sem que
percebêssemos. Deparar-se com tais criaturas é uma alegria e
um assombro. Espantosa felicidade, feliz espanto que agora
espreita os leitores deste livro - pois nele hão de conhecer
o gaúcho negro Egas Faraó, "o Duque da Senzala",
impressionante e vertiginosa criação do escritor bajeense
Valdomiro Martins.
Em sua obra clássica Historia del Gaucho, o historiador
uruguaio Fernando O. Assunção elenca trinta e sete possíveis
origens linguísticas para a palavra "gaúcho"; entre elas, um
termo espanhol do século XVIII que significava "irregular,
canhoto". Segundo essa explicação etimológica, o gaúcho
original seria um "desvio" na história dos impérios
coloniais, uma ramificação inusitada, uma criatura das
margens. E, nesse sentido, o negro Egas Faraó, veterano das
charqueadas e das guerras do continente, às vezes
bandoleiro, às vezes justiceiro, é o gaúcho por excelência.
Após conquistar com sangue e teimosia sua liberdade e sua
independência, ele funda seu pequeno reino nas profundezas
da fronteira entre o Brasil e o Uruguai, "um mundo de mato e
bosta", "terra estranha, cruel e apaixonante" onde "a glória
e o terror" se misturam em doses iguais. É lá que o
encontramos, senhor de seu mundo, verossímil e fatal.
Espécie de Martin Fierro afro-pampiano, Egas Faraó vem
engrossar as histórias fragmentárias do negro Bonifácio
(protagonista no conto homônimo de Simões Lopes Neto) e do
Tio Lautério (personagem-narrador do Antônio Chimango, de
Amaro Juvenal). Ambos são epítomes do gaúcho campeiro, essa
híbrida figura literária que oscila eternamente entre a
híbris e a sapiência, ora terrível, ora prudente, mas sempre
formidável. Contudo, pouquíssimo sabemos sobre eles. Suas
histórias permaneceram escamoteadas na fumaça das letras. Em
O Duque da Senzala, Valdomiro Martins nos apresenta um digno
sucessor desses personagens, mas o faz com minucioso e
impactante desvelamento. Num estilo hard-boiled, que ora
lembra o romance policial noir, ora remete ao faroeste
épico, Valdomiro reconstrói uma história de escravidão,
brutalidade, injustiça e sobrevivência - a história de Egas,
que poderia também ser a história de Bonifácio e Lautério, e
que reflete as vidas ocultas de tantos personagens reais,
cujos rastros Valdomiro seguiu e resgatou em acurada e
importantíssima pesquisa documental.
Nosso encontro com Egas não ocorre de forma imediata. Num
eficiente lance narrativo, Valdomiro inicia seu relato pelo
ponto de vista de outro personagem: o citadino Ábedu Lecur.
Vendido pela própria mãe, ele não recorda o rosto dos pais
(exceto nos sonhos) e passa a infância como escravo em uma
mansão aristocrática em Porto Alegre. É apresentado ao mundo
dos livros por Sotero, velho cativo que encontrou sua
liberdade possível nos recônditos de uma biblioteca.
Escapando ao cativeiro, Lecur torna-se homem letrado,
torna-se republicano. Percebe que o fim da escravatura não
resgatou seus semelhantes da opressão, da injustiça, da
miséria; algum outro gesto, drástico e grandioso, deve ser
feito para endireitar os horrores de História. Então vem a
queda da monarquia, despertando sonhos de redenção e justiça
universais. O início da Revolução de 1893, contudo, o
convence de que será necessário lutar para impor sua visão
ao mundo. Por isso, Lecur parte numa jornada louca e
perigosa à região da Campanha, aos primitivos recessos da
Fronteira. Lá, pretende campear e matar os "irmãos
castelhanos" que comandam os rebeldes e ameaçam derrubar a
República recém nascida. Para isso, precisa contar com a
ajuda de Egas Faraó - pois o pampa é um inferno fascinante
que só abre as portas a seus próprios filhos. A relação
conturbada e envolvente entre Lecur - idealista, visionário,
positivista - e Faraó - cético, individualista, indomável -
é a alma que confere vida e verossimilhança a essa
surpreendente narrativa de aventura, vendeta, violência e
talvez amizade.
Em alguns momentos, O Duque da Senzala lembra aquelas
jornadas infernais de que a literatura é profícua: os nove
círculos dantescos, as andanças de Ulisses e Eneias entre os
mortos. Em outras passagens, assume um ritmo alucinante e
irredimível que recorda o cinema de Sam Peckinpah -
especialmente Meu ódio será tua herança e Tragam-me a cabeça
de Alfredo Garcia. Também há toques de realismo mágico, pois
os tais "irmãos castelhanos" talvez sejam encarnações de
antigos demônios que assombram há séculos os pampas e cujos
nomes ecoam presságio e ameaça: Basilisco, Gualicho e
Yarará. E há também ressonâncias de outras obras, de outras
emoções: Lecur tem algo de Prometeu, em sua revolta
humanista contra a tirania dos deuses; Faraó tem algo de
Aquiles, Hércules, Iago. Além do mais, acaso não é este um
traço de reconhecimento que atravessa toda a literatura, de
fora a fora, e que une textos separados por séculos e
continentes e culturas: a teimosia humana – que alguns
chamam heroísmo, outros, loucura – em afirmar sua própria
dignidade, em lutar contra o apagamento e o olvido, mesmo
nos abismos da truculência e da opressão, mesmo quando seres
humanos são tratados como bestas e coisas?
Por múltipla que seja, a obra exibe, de ponta a ponta e de
forma homogênea, aquele elemento essencial a todo romance
histórico, e tão difícil de se efetivar: a verossimilhança
sensorial, isto é, a impressão de que andamos de fato por um
mundo desaparecido e magicamente recuperado. Nas páginas
deste livro encontramos a sombra de casarões há muito
demolidos; a pestilência da Porto Alegre antiga; o rebrotar
de sangue nas querelas políticas; a grama congelada que se
parte sob os cascos dos cavalos na amplidão glacial do
pampa. O grande ermo da campanha, aliás, vai pouco a pouco
emergindo como um dos personagens centrais desta aventura:
mundo primevo e fatídico, onde as lealdades e os ódios
pessoais sobrepõem-se às considerações abstratas; onde um
rifle Smith & Wesson pode adquirir os contornos de um
artefato mortiferamente mágico; onde curandeiras charruas
traçam cruzes de sal no dorso dos pedregulhos; onde o
nevoeiro se esgarça nas cruzes de velhos cemitérios; onde
cavernas soturnas ocultam tesouros; e por onde ecoa a
sussurrada sabedoria do gaúcho negro, em epigramas terríveis
e certeiros, como este: A vida não foi inventada para ser
entendida. |