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Título:
ENQUANTO HABITO
Autor: Liana
Marques
Capa: Pintura de Elizethe Borghetti
Dimensões: 14 x 21 cm
Páginas:
Gênero: Poesia
Ano: 2016
A poesia de Liana
Marques
Ronald Augusto
A poesia de Liana Marques habita a experiência, sim.
Ainda quando sua voz poética se lance a habitar as
câmaras secretas do poema e seus dilemas construtivos,
ela o faz sempre de janelas abertas, ou seja,
transportando para o centro compacto desse objeto verbal
a instabilidade do seu mundo claro e ensolarado. A poeta
carrega sua linguagem com aquela matéria incandescente
de que fala a epígrafe de João Cabral, a saber, a
matéria-vida explosiva que “não foi feita para ser
guardada num cofre”. E talvez seja mesmo por essa
curiosa razão que os poemas de Liana Marques conseguem
ser indiretos e sugestivos e ao mesmo tempo jamais se
revelem fechados a sete chaves.
Enquanto habito reúne uma sequência de imagens e
processos discursivos evocativos tanto de um cotidiano
fortemente transfigurado, como de um espaço de memórias
submetido à decupagem estética. Liana Marques se dobra
sobre a experiência do real na escolha demorada dos
melhores instantâneos verbais com que efetiva seu
esforço tradutório. Cada poema é uma chance de linguagem
que se inaugura e um dispositivo sígnico que se exaure.
É preciso reiterar o jogo, reinventar a emoção no
recorte do ritmo.
decerto um texto exaurido, retido no sentimento
detém alguma chance face àquele que surtiu
rumor de papel seco na direção do cesto
o décimo movimento em doze avos do tempo
depois de puxado terço uma centena de vezes
As senhas da memória de Liana Marques, seu relicário
remexido até o limite do destrato ou até alcançar o luxo
da deriva, repercutem no sincopado de poemas breves e
quase narrativos. Liana escreve poemas que não desprezam
a dimensão oral ou sonora; sua poesia pede licença para
cantar e contar algo a uma audiência com indispensável
apetite musical. Entretanto, o leitor-fruidor de
Enquanto habito deve estar preparado não só para a
comunicação compartilhada, essa “superfície onde a
clareza prevalece”, mas, sobretudo, também disposto a
aceitar o convite para excogitar, por exemplo:
a busca do veio
qualquer que seja
um naco líquido
no sumo, a envergadura do corpo
fluidez precipitada no vácuo
hiato no papel feito barco
a considerar o rumo
Liana Marques é “fluida e aprendiz de coisas correntes”.
Com efeito, a língua corrente é matéria que diz respeito
à poesia de Enquanto habito. Resistindo à tendência do
afrouxamento da língua que é praticada em todos os
instantes, Liana se vale da vivacidade criativa e do
frescor que constituem – ou ao menos deveriam constituir
– os falares cotidianos. Muitos poemas se servem
esteticamente de traços e inflexões, inclusive
regionais, da língua transeunte de modo a romper com a
obediência à ideia de “termo médio” e que reduz a fala à
sedimentação imobilizante devido ao uso repetitivo. Essa
saborosa instabilidade de linguagem, levada a efeito por
Liana Marques em sua poesia, torna-se crítica, ao fim e
ao cabo, tanto em relação à fala cotidiana empobrecida
de significados, quanto à rigidez aristocrática com que
alguns poetas passadistas visam se perpetuar. Por isso é
sempre salutar deparar entre as capas de Enquanto habito
arranjos verbais tais como: “enquanto o cão afocinha o
longe”; “em tempos que vivo no mundo da lua”; “as
meninas como mariposas/ faziam voltas naquela barriga”;
“independente do tempo assopro”; “arremete pro vão o que
quem sabe fosse”.
Liana é uma poeta com uma singularidade. Há algo em sua
poesia que só se verifica na prosa. Ou em quem escreve
prosa. Mas não é algo material, antes de qualquer coisa
é algo espiritual; uma espécie de feeling. À semelhança
de um bom prosador, Liana cria seus ritmos e cadências
sabendo com quem está falando. Estou usando uma metáfora
para sugerir que sua poesia tem o leitor como o centro
de seu interesse. E esse é um dos predicados do
prosador. Desde o século 19, como pondera Walter
Benjamin, o tempo vem provando que o prosador tem uma
noção mais ou menos clara da clientela a que serve, ao
contrário do poeta que, no se dispor a apresentar sua
identidade como “a voz” por detrás da linguagem, mesmo
assim costuma apreciar mais o solilóquio do que qualquer
outra coisa. Ou seja, o leitor lhe parece uma entidade
excessiva ou um mal necessário com o qual ele tem de se
haver muito a contragosto já que, à revelia da sua
vontade, o texto só se completa no instante da leitura.
Assim sendo, para essa figura algo caricata do poeta,
pouco importa quem é e como reage esse leitor frente aos
seus estímulos. Em contrapartida, Liana parece ser uma
poeta que não despreza o leitor como secundário, pois do
seu ponto de vista o que está em jogo é a conjunção
necessária do sucesso estético com os aspectos
comunicativo e referencial do poema. O leitor, portanto,
é o interlocutor, o personagem implícito do percurso
textual de Enquanto habito, pois a poeta, nesse
intercâmbio entre vontade e desejo de linguagem, lhe
estende a mão e diz:
te repasso
nas páginas em branco
da esfera criativa
esboço rascunhos
traço fino
véu de acabamento
te vejo pronta
te apresento
o prazer é meu
Mas o prazer é também do leitor que se desanuvia
deambulando pela cenografia de emoções e memórias
justapostas e materializadas por Liana Marques. Os
desejos e sentimentos escapam à sua personalidade indo
parar nos lugares incomuns do pensamento desse leitor
que é muitos e ao mesmo tempo nenhum. Aquilo que, à
primeira vista, parece pertencer apenas à pessoa civil
da poeta Liana Marques, os biografemas irredutíveis aos
poemas e que perfazem o conjunto de Enquanto habito,
subitamente desabrocham familiares à fruição do leitor,
transferindo o que antes dizia respeito apenas ao
invisível (ou ao impreciso) à textura mesma do aparente,
isto é, o poema enquanto matéria verbal viva e
proliferante. E junto com a poeta chegamos a um lugar de
onde ninguém leva cheiro de terra, nem “novembros em
cachopas na janela/ nem os frutos de algum esforço”, mas
tão só “a leveza das memórias por serem impressas”.
Por fim, agora que o leitor se acha na antessala de
Enquanto habito que ele não se demore muito a cismar;
que ele habite intensamente esse recinto vertiginoso.
Liana Marques sabe que, diante da provocante imprecisão
do poema, o fruidor anseia para que se abram as portas
de modo a que seja introduzido nesse universo
desconhecido. Entretanto, a poeta também concebe a
leitura como uma forma de descerramento irônico dessas
portas que estão sempre maliciosamente abertas. |