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Título:
O LOUCO NO ESPELHO
Autor: Lúcio Humberto Saretta
Dimensões: 14 x 21 cm
Páginas: 136
Gênero: Crônica
Ano: 2017
Futebol não acaba
na quarta-feira de cinzas
Nelson Rodrigues, torcedor do Fluminense (time carioca)
usava de sua linguagem ácida e olhar tremendamente
crítico para falar da sua paixão pelo futebol. Durante
duas décadas, o “anjo pornográfico” dedicou-se a
escrever sobre o esporte, uma grande metáfora para falar
do próprio país – ele leu o Brasil através dos campos de
futebol. Segundo relatos da época, muitas vezes ele
sequer ia ao estádio ver os jogos, era de casa mesmo que
fazia sua leitura do jogo. Outras vezes, ao assistir in
loco algum jogo, pedia informações ao amigo Armando
Nogueira, ou perguntava que jogo estavam assistindo.
Afinal, o jogo nem importava mesmo, era a possibilidade
de uma boa história que estava ali, entre ele e o gol.
As crônicas escritas por Nelson são até hoje estudadas
em seus aspectos formais e também em seu conteúdo. Com
sua escrita despojada e irônica, o escritor conquistou
milhares de leitores ao longo dos anos em que se dedicou
a escrever sobre futebol, sobre o Brasil — “a pátria de
chuteiras” — frase que se tornou jargão na voz de muitos
locutores até os dias de hoje. Romancista e dramaturgo,
Nelson trouxe para o âmbito da crônica a paixão pela
literatura que compartilhou com o futebol.
Eduardo Galeano por sua vez, escreve sobre as obscuras
histórias do futebol, um mundo paralelo ao que é
assistido nas partidas sob os fortes holofotes dos
estádios ou em dias ensolarados. O escritor uruguaio,
auto-declarado um perna de pau, coloca nas palavras, nas
histórias que recria, ainda que breves, situações,
acontecimentos e relações que o torcedores —
espectadores de apenas um possível ponto de visão — não
chegaram a conhecer. E outras histórias da própria
origem do esporte, das suas relações com o mundo, com a
literatura (até mesmo Shakespeare) Futebol, para
Galeano, além de uma paixão, era também política. Prova
substancial de que tudo o que nos cerca é constituído de
faces que desconhecemos.
Jorge Luís Borges não gostava de futebol. Não gostava
mesmo, dizia que era uma estupidez e criticava a
popularidade do esporte. Gosto muito de Borges,
principalmente de seus prefácios, lendo Prólogos, com um
prólogo de prólogos, livro que é uma compilação dos
prólogos e apresentações escritos por Borges é que
desenvolvi meu gosto por apresentações. Apesar das
muitas semelhanças entres os gostos do escritor
argentino e os meus, no futebol divergimos. Desde a
infância o esporte bretão convidava-me a doar a minha
atenção em noventa minutos de partida. E as inúmeras
tentativas de praticar o esporte, resignaram-me à
literatura e a predileção pela não execução de uma vida
esportiva. Não havia como contestar a natureza: sou uma
criatura da escrivaninha e da pena, a bola de futebol,
deixo-a aos nobres esportistas que nasceram com o
talento que a mim os deuses não contemplaram.
Escrever uma apresentação não é uma tarefa fácil, já fiz
algumas, de poemas, contos, novelas e romances. Para
escrever uma apresentação não se pode ler apenas uma vez
o livro, são necessárias algumas leituras em que nos
comportamos de diferentes modos: leitor das histórias ou
poemas com nossos corações sendo tomados pelas palavras
e ideias do autor e depois a leitura crítica, quando
ficamos muito atentos a cada detalhe técnico da obra.
Somos então envolvidos pelo texto, permanecemos nele
durante um bom tempo e do universo que ele nos
proporciona e dessas impressões organizamos e mostramos
ao mundo a nossa percepção do livro. Permitam-me uma
confissão: se não gostamos do livro, mesmo que ele seja
muito bem escrito, a apresentação torna-se um abismo
entre as palavras, é como se estivéssemos a montar um
puzzle totalmente desordenado e confuso. Agora se
gostamos, é muito gratificante escrever e ficamos
felizes de ter nossas impressões associadas à obra.
É como me sinto agora, ao escrever sobre O louco no
espelho de Lúcio Saretta, um livro de crônicas
esportivas. Eu uma borgiana, que vivo na minha
biblioteca/paraíso, sou convidada para escrever
sobre...esportes. Aceitei, por ser Lúcio um dos autores
da antologia de contos da oficina de Assis Brasil do ano
de 2015, que eu já havia prefaciado e de quem gostei
muito quando li. Temerosa, não do que ia encontrar, mas
de como eu daria conta de tal tarefa, comecei minha
leitura das crônicas.
Ao pensar sobre Nelson Rodrigues e o poder incontestável
da metáfora e da linguagem, Eduardo Galeano e a história
do futebol e como as palavras podem nos mostrar mais
sobre o mundo do que sabemos e ainda sobre Borges e a
arte de escrever prólogos é que entendo a potência da
relação da literatura e do futebol. Lembremos que a
literatura é representação de mundo, ela já, há muito
tempo definida por Aristóteles (que provavelmente seria
torcedor do Internacional pela sua genialidade), vale-se
da verossimilhança, qualidade mimética de aproximar-se o
quanto mais possível do mundo que se representa. Então,
essa organização de um universo paralelo e ao mesmo
tempo simbiótico com o real é executada através da
linguagem, da escolha das personagens, do tempo que será
narrado e da voz que irá contar essas histórias aos
leitores. É preciso que essa paixão, esse pathos que
move o escritor encontre também uma forma, um modo
singular de expressão, entram aí os gêneros literários:
romance, conto, novela e crônica.
Escrever crônicas é um exercício de exigência com a
realidade. Gênero predominantemente ligado à ideia de
simultaneidade com o tempo do seu escritor, a crônica já
em seu nome apresenta-se: traz em si a questão do tempo,
de Chronos — o deus grego que associado a temporalidade.
Também é um texto que se pretende breve, uma conversa
com o leitor, onde o senso crítico do autor emerge em
cada frase, apresentando sua forma de pensar, repleto de
singularidades que tomam a realidade para si e a
reapresentam ao leitor. Muitas vezes ela se parece com o
conto – podemos dizer mesmo da irmandade que se
estabelece entre os dois gêneros – por contar uma
história, por apresentar enredo, tempo, espaço, narrador
e personagens.
E há mesmo vários tipos de crônica: histórica,
humorística, narrativa, dissertativa, lírica, poética e
jornalística. As crônicas de Lúcio Saretta, se
enquadram, para mim, em dois tipos – a narrativa, pois
contam histórias de tempos diversos e lírica, por
tomarem para si uma linguagem tão bonita e tão bem
elaborada que muitas vezes li como quem estava a ler
prosa poética. Passagens repletas de lirismo e que falam
de amor, morte, história, amizade, música e esporte.
Lembro-me das musas, as da mitologia que presidiam as
diferentes formas de arte e conhecimento. Não há nenhuma
que cuide especialmente do futebol. Pesquisei a sério,
mas levando em conta que a dedicação de Lúcio, a
verdadeira contemplação de sua alma é a literatura,
então podemos dizer que evocamos duas dessas beldades (a
beleza é um dos fatores primordiais do esporte em
questão – pensemos nos dribles e nas grandes jogadas que
criaram mitos futebolísticos). Calíope e Clio: a
primeira cuidava da arte da eloquência e a segunda da
história. E Lúcio usa da literatura para resgatar a
história do futebol. Ainda podemos citar Camões em Os
Lusíadas: “Cesse tudo o que a Musa antiga canta, Que
outro valor mais alto se alevanta” - e do centro do
campo verde e vistoso, ergue-se a razão de tudo o que
aqui se apresenta: a paixão pelo futebol.
As crônicas que compõem O louco no espelho são
essencialmente sobre futebol. Em muitas páginas de
episódios de diferentes épocas da história do esporte
Lúcio traz ao leitor personagens que habitam o
imaginário de torcedores de todos os tempos, mesmo os
mais jovens que conhecem apenas essas peculiares
personalidades através de fotos ou de programas de
televisão antigos. E os mais velhos, os que alcançam com
sua memória um passado mais distante, há a rememoração,
a saudade de tempos vividos, daquele aperto no peito de
ansiedade ou de alegria. O livro de Lúcio, mais do que
uma obra sobre esporte, é sobre amor.
Amor pela arte que é o futebol, por seu domínio
estético, social e afetivo. Ópio do povo, tantas vezes o
futebol é a única alegria (embora Vinicius de Moraes
tenha dito que é o carnaval) permitida a homens de todas
as idades e credos. Assistir uma partida de futebol,
admirar a personalidade de um jogador, acompanhar o time
durante um campeonato, ser testemunha de momentos
históricos como copas, dribles fabulosos, jogadores que
se tornam imensos a cada jogo, tudo isto se configura
como a prática do amante do futebol.
Grandes personalidades habitam esse imaginário que Lúcio
Saretta apresenta em O louco no espelho. Desde os menos
conhecidos de times locais até craques conhecidos no
mundo inteiro por milhares de torcedores e admiradores:
Garrincha, Pelé, Leônidas, Didi e tantos outros que
movimentaram esse museu futebolístico que é a memória de
muitos brasileiros.
Nessas histórias contadas em O louco no espelho, não
existe um torcedor único ou ainda apenas um jogador
lembrado, são muitas narrativas que trazem histórias
antigas e desconhecidas do grande público e outras que
foram notícias e percorreram o país e o mundo. Como
surgimento de ídolos e times, até as derrotas
cabalísticas em torno do número sete. Times grandes,
seleções nacionais, times pequenos, times rivais como
Grêmio e Internacional, Juventude e Caxias e até
histórias com os nossos hermanos e a grande sacada de
ter um Papa que gosta de futebol. Narrativas que contam
dos problemas sociais, raciais, financeiros, identidades
e origens, amor e morte, saudades e o desejo de glória.
Tudo é memória nas crônicas de Lúcio.
Também Lúcio flerta com o boxe, comenta de boxeadores
que fizeram nome nas histórias do ringue, por derrotas e
vitórias, suas origens e destinos. Há casos conhecidos
como Rocky Marciano, Jake La Motta, Sugar Ray Robinson,
Maguila, Evander Holyfield e Mike Tyson. As crônicas por
sua vez, flertam com o boxe e com o futebol, numa
alegoria que se move no ringue e no campo, lembrando
grandes nomes e as tristezas e contentamentos dos
pugilistas. Suas histórias pessoais ficaram registradas
na memória de gerações de espectadores que vibraram a
cada golpe e também foram nocauteados junto com seus
ídolos.
Há ligações com a música: Pink Floyd, Beethoven, Noel
Rosa, Elza Soares, musicalidades que vão surgindo entre
as histórias do futebol. Fios de arte e cotidiano que
vão formando a tessitura que Lúcio se propõe a
apresentar ao leitor. A literatura emerge em muitos
momentos do livro, escritores e suas histórias como
Edgar Alan Poe, Ernest Hemingway, Charles Dickens e
Melville — são apenas algumas referências que estão nas
crônicas e que vão envolvendo o leitor num espaço
imagético bem maior que o de um campo de futebol. E que
reflete o próprio autor que conjuga a paixão pelo
futebol a que sente pela literatura, ao trazer as
histórias desses escritores ele nos aponta para a
simultaneidade dos sentimentos, da trajetória de nossas
escolhas, das peculiaridades de nossos destinos.
Uma das características do texto de Lúcio Saretta que
lhe concede mais qualidade ainda, são as experiências
pessoais, a juventude, as conversas, o rock e o time da
cidade natal: Caxias e nesse universo que aparentemente
é isolado do resto do mundo, tudo entra e se transforma
em matéria a ser narrada. Muitas vezes ele assume seu
papel de narrador, e de muito próximo conta sua
participação em muitas histórias e conversas.
Na verdade, a grande matéria de Lúcio está muito além do
futebol. É a vida, o cotidiano, a criação e manutenção
do sonho. Em cada um de nós a arte reverbera de uma
maneira diferente, o que importa mesmo é que ela se
instala, constrói uma série de imagens, de sonoridades,
de afetos e de memórias. O que é oferecido ao leitor em
O louco no espelho é uma parte do imenso gosto de seu
autor pelo futebol, pelo esporte e pelo significado dele
para a vida de tantos que se entregam a essa paixão.
Lúcio ama as palavras e o que se pode fazer com elas. E
ele faz, com qualidade de um bom contador de histórias,
que nos surpreende a cada novo texto. Suas narrativas
são cuidadosas em termos cronológicos e históricos,
sobretudo são pensadas para o leitor e não só o torcedor
de futebol, mas o leitor que deseja o universo todo para
si. E sendo um apaixonado pela literatura, nela, ele
depositou seu amor pelo futebol. Paixões diferentes em
seus objetos de atenção, mas similares em sua
intensidade. O apaixonado pelo futebol persegue seus
ídolos, acompanha suas trajetórias, decora seus placares
e cada jogada executada, que é arte, em movimento. O
apaixonado pela literatura vale-se da linguagem e todas
as possibilidades dela, o mundo mimético é um espaço em
que pode-se criar o que for desejado. Não existe um
limite para a execução dessa ideia. Personagens, tempo,
espaço, narrador e a própria fábula que se pretende
contar desenvolvem-se de maneira única de acordo com a
mente de seu demiurgo. E é esse o papel de Lúcio aqui,
um demiurgo de um universo construído pelo futebol e
pela literatura, onde não há uma fronteira, mas uma
ponte: a linguagem. É através dela que as histórias
ganham o “mundo” fora do campo de futebol, do ringue,
dos álbuns de imagens e das memórias de cada torcedor.
Alberto Manguel, outro argentino formidável como Borges,
diz em um de seus livros que o leitor ideal é aquele que
está com o autor quando ele escreve o livro. Penso
então, em Borges, no seu não gostar de futebol, no
entanto penso que ele ia ficar satisfeito de ler O louco
no espelho, por alguns motivos: pelo espelho metáfora
tão viva em sua obra e no qual todos nós nos refletimos;
pela universalidade que se expande em cada texto e cada
história, não é sobre futebol, mas sobre tudo que nos
cerca que as crônicas tratam e finalmente pela ideia de
amor e respeito à literatura que são o mote principal de
Lúcio. E Borges seria esse leitor ideal, talvez não se
apaixonasse pelo futebol, mas ficaria feliz com tudo o
que está na escrita de Lúcio.
A menina que assistia jogos de futebol com o pai e que é
torcedora do Internacional, viu-se feliz ao ler sobre
tantas histórias que conhecia apenas algum ou outro
detalhe. A intelectual e teórica da literatura viu-se
muito feliz ao ver cada palavra trabalhada com sábia
escolha e com uma intencionalidade tão bem pensada e
organizada. Lúcio me trouxe literatura mais do que tudo,
e me trouxe futebol de uma maneira tão bonita que me fez
lembrar do Nelson Rodrigues e do Galeano. E também do
Otto Lara Resende, Paulo Mendes Campos e Carlos Drummond
de Andrade em diferentes visões sobre o futebol. E do
Vinicius de Moraes e a ideia toda de que o carnaval é a
alegria do povo. Não é não. O carnaval se perde na
quarta-feira, o futebol não se esgota, cada semana tem
um jogo novo, emoção nova e história que nova, vai ser
tornar eterna quando um escritor como Lúcio entender que
a literatura está ai para nos ajudar a entender a vida e
a perpetuar o sonho.
Ainda em Borges, tudo é labirinto e repleto de imagens
que nos pertencem num mundo a que nos pertencemos como
imagens também. O louco no espelho somos todos nós e as
nossas paixões, futebolísticas, musicais, literárias e
essencialmente, humanas.
Gabriela Silva, março de 2017. |