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Título: O NEGRO DA CASA
Autor: Valdomiro Martins
Formato: 14 x 21 cm.
Páginas: 356
Gênero: Romance
Publicação: Bestiário, 2025

ISBN 978-65-83197-82-5

Um autor em pleno domínio de seu ofício.

Conheci Valdomiro Martins em 2017, durante a pós-graduação em Escrita Criativa da PUCRS. Ele vinha de Bagé para assistir às aulas do doutorado, e apesar da distância geográfica, desenvolvemos uma afinidade intelectual. Conversávamos sobre diversos temas nos intervalos das aulas, mas, por incrível que pareça, nunca falamos de nossa própria literatura. Naquela época eu conhecia Valdomiro, meu amigo, mas não o autor.
A situação mudou em 2019, quando ele publicou o romance O duque da senzala. Lembro que num fim de tarde de dia útil, num café do bairro do Bomfim, fui prestigiá-lo no discreto lançamento porto-alegrense. Descobri então o autor Valdomiro Martins, e acredito que tenha sido no momento certo. Encontrei um romance histórico que mesclava crítica social com elogiável domínio de estratégias narrativas.
O duque da senzala narra a história de Ábedu Lecur, um fictício ex-escravo que busca espaço no meio social e político no Rio Grande do Sul da século XIX. O autor reconstrói com cenas poderosas a guerra conhecida como Revolução Federalista e conduz seu personagem ao “coração das trevas” do conflito sulino. Assim como Joseph Conrad na célebre novela, Valdomiro Martins constrói uma atmosfera de horror absurdo ao narrar com precisão atrocidades cometidas por seres humanos contra outros seres humanos.
Depois, Valdomiro publicou Onanai – ficções (2024), que apresenta narrativas que transitam entre o conto e a novela. E agora lança O negro da casa, romance que como suas obras anteriores, tematiza e reflete sobre experiências vividas pelos negros gaúchos. Ao contrário de seus outros livros, porém, este novo romance se passa na contemporaneidade. Ainda assim, o passado cobra permanência, tanto o passado coletivo, que emerge da memória das vivências da população negra, do sistema escravista, do racismo sistemático, como o passado individual, que só pertence àquele personagem.
O primeiro capítulo recupera a trajetória de Ventura Ivo, “um desses negrinhos de estâncias”, filhos de funcionários explorados, que vê os pais morrerem trabalhando em excesso e encontra no exército um meio de ascensão social. Agora, recém aposentado e ainda na meia idade, Ventura Ivo, vive em situação financeira cômoda, assim como assumiu um “cômodo ponto de vista”. A comodidade, no entanto, não impede que ele sinta “o brotar de um azedume no gosto da própria existência”.
À época em que conheci Valdomiro Martins na pós-graduação da PUCRS, eu trabalhava com o professor Luiz Antonio de Assis Brasil no que viria a ser o livro Escrever ficção – um manual de criação literária (2019). A obra solidifica uma visão de literatura que foi construída ao longo da carreira de Assis Brasil: a de que o personagem é o principal elemento da narrativa literária, é mais relevante do que a história, é o centro irradiador da história. O personagem conduz a narrativa e, por isso, o ficcionista deve dedicar a ele o melhor de sua inventividade; deve, sobretudo, dar-lhe multiplicidade interior, para torná-lo o mais próximo possível de um ser humano, com virtudes e defeitos.
Uma década antes do doutorado, em 2007, Valdomiro havia participado da Oficina de Criação Literária da PUCRS. Considera um marco em sua carreira, pois “a oficina me deu a confiança e habilidades necessárias para publicar meu primeiro livro, em 2008, Guerrilha e Solidão” . No caso de O negro da casa, as aulas do doutorado, inclusive as ministradas por Assis Brasil, parecem ter deixado uma marca no autor. O romance apresenta variadas qualidades: uso eficiente do flashback, habilidade na construção de cenas, abordagem de temática social relevante. Mas talvez sua maior força seja a construção do personagem.
Ventura Ivo carrega em si o a conjuntura social à qual pertence, mas reage a ela de maneira singular. É um indivíduo com conflitos e contradições sobre aos quais preferiu não pensar – ou terá sido por necessidade? Trata-se de um homem que venceu na vida à custa de manter-se subordinado ao vazio das estruturas do mundo, vazio que ele fingia não enxergar.
A guerra, no sentido de luta armada, presente em outras obras do autor, reaparece aqui, já que Ventura construiu carreira no Exército e integrou as Forças de Paz da ONU em Angola. Mas há também outra guerra em curso: a das microagressões raciais, da violência sutil. Isso se intensifica no contexto de prosperidade financeira e do casamento com uma mulher de ascendência alemã. Como estratégia forma de sobrevivência, Ventura passou décadas a “brincar de ‘o mestre mandou’”, tanto no exército quanto na vida pessoal. O romance ganha fôlego à medida que ele se sente saturado dessa condição e se insurge contra ela. Aí está a questão essencial de Ventura Ivo, como deixar de ser um cordeiro? Como não sacrificar mais sua interioridade?
A primeira medida é procurar ajuda profissional. Recorre a uma psicóloga, “uma consulta inédita em sua vida”, para investigar algo nele que não mais suporta, mesmo sem saber exatamente o quê. A partir daí, a engrenagem de mudança interior do personagem, com efeitos em suas ações externas, começa a operar com vigor cada vez maior. A psicóloga sugere uma atividade coletiva, e, com alguma relutância, ele se matricula em uma oficina de poesia. Lá, reencontra alguém de seu passado — um “duplo” que fez outras escolhas e que o estimula, não sem antes irritá-lo, a encarar aspectos de si mesmo que ele havia negligenciado. Talvez aí esteja a origem daquele “azedume no gosto da própria existência”.
Não cabe revelar mais. O leitor, quando iniciar a leitura, vai descobrir por si mesmo, já que com certeza vai querer virar as páginas deste romance que confirma Valdomiro Martins como um autor em pleno domínio de seu ofício.

Luís Roberto Amabile .

Sobre o autor:
Nascido e criado em Bagé, RS, Valdomiro Martins é doutor em Letras. Escrita Criativa, na PUC-RS. Romancista e contista, estreou na literatura com o livro "Guerrilha e solidão", 2028, primeira narrativa de contos sob a ótica negra a ser publicada no estado do Rio Grande do Sul. Desde então, participou do lançamento de antologias e obras individuais, com destaque para o romance " O duque da zenzala". Bestiário, 2019.