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Título: O UM: Inquérito parcial sobre o caso Ingo Ludder
Autor: Antonio D. Cattani

2ª edição

ISBN 978-65-6056-107-6

Dimensões: 14 x 21 cm
Páginas: 120
Gênero: Romance
Ano: 2024

A literatura de antecipação que não envolve duendes, fadas ou dragões, nunca traz boas notícias. A obra de ficção "O um" escrita no início de 2016 e publicada em 2017, já dava conta do surgimento de algo latente no mundo ocidental. O neoliberalismo não se autorregenera, pelo contrário, acentua de forma inexorável as desigualdades e a luta de todos contra todos solapando os princípios básicos da democracia.

Para continuar dominando corações e mentes os poderosos precisam se valer de homens-acontecimento: Donald Trump, multimilionário crapuloso, assumiu a presidência dos Estados Unidos da América em 2017 sendo reeleito em 2024; Jair Bolsonaro, sinistro político ocupando cargos parlamentares durante quase três décadas, foi eleito presidente do Brasil; Javier Milei, alucinado demagogo promovido pela grande mídia, foi empossado presidente da Argentina em dezembro de 2023.

Seus simpatizantes e, sobretudo, seus financiadores, estavam a postos há muito tempo. Os desastres sociais foram anunciados antecipadamente, porém, algumas vítimas ainda não entenderam a consequência das suas escolhas ou da sua passividade. No âmbito das respectivas nações, esses homens-instrumento executam as ordens do capital com força e rapidez: destruição e privatização de largos segmentos do aparelho de Estado, sobretudo dos órgãos de controle, repressão aos vulneráveis potencializando a intolerância e os preconceitos dos ricos brancos, dos ressentidos de todas as classes.

O paralelo com o que aconteceu na Alemanha nos anos 1930 e parte dos anos 1940 é inevitável. Não se trata de algumas poucas personalidades demoníacas, de demagogos ludibriando pessoas ordinárias e idiotas que quando a situação reverter dirão que não sabiam o que estava acontecendo ou que apenas cumpriam ordens. É o oposto. Desde o início eles sabiam o que estavam fazendo. Os perpetradores têm juízo moral e social peculiar.

Não são desinformados nem desprovidos de consciência do resultado dos seus atos. Eles são movidos por entendimentos específicos sobre a natureza humana, sobre o Estado e sobre a História, compondo uma concepção coesa e articulada do mundo. Obviamente, essas concepções não correspondem ao padrão iluminista que constitui a base do mundo civilizado, democrático e solidário.

Milhares de atos concretos de racismo, de desumanidade, de vilania constituem um padrão ideológico, histórico e estrutural, compartilhado de forma consciente por determinados indivíduos. Hannah Arendt muito contribuiu para promover uma conceção totalmente equivocada sobre a natureza do mal e dos crimes. O conceito de “banalidade do mal” destaca de maneira errônea, para não dizer desonesta, a irreflexão ou a incapacidade de pensar como justificativa para as ações de perpetradores e seus cúmplices.

O padrão incivilizado de largos segmentos da população é financiado por indivíduos ricos que buscam garantir seus privilégios contando com a adesão de pessoas providas de consciência. O mal existe e é praticado por indivíduos conscientes de estarem desrespeitando o imperativo categórico de tratar todos os seres humanos como portadores de direitos. A malignidade se manifesta em indivíduos que, de modo deliberado, operam contra o reconhecimento e o respeito pela dignidade dos outros. Fazer a apologia da barbárie, do horror, da desumanidade, agir de maneira anti-igualitária transforma os indivíduos normais em criminosos, em assassinos.

Para que ocorra essa transição mortífera não basta apenas permissividade e discursos. As pessoas têm que estar armadas de instrumentos letais. Redigido sem ter conhecimento do filme de Alex Garland, Guerra Civil (2024), Tenebris Diebus, Dias tenebrosos parece explicar o que aconteceu antes dos eventos mostrados no filme. Num futuro próximo, os Estados Unidos são dilacerados por algo há muito tempo engatilhado (literalmente).

Na primeira parte, Exspectans diebus – “Dias de espera” – é apresentado um dos tantos complôs em preparação. No caso, por cinco norte-americanos arquetípicos das classes abastadas agindo para reverter questões políticas no sentido que lhes interessa: lógica de classe, sentimentos de superioridade racial, ganância desmedida nos negócios, capacidade de mobilização de recursos.

Na segunda, Diebus spectans – “Dias de observação”, uma jovem antropóloga norueguesa pesquisando uma tribo de indígenas (figuras clássicas da população extinguível), faz um relato instigante da situação. Com o olhar atento, convive alguns dias com outros personagens obcecados e aparelhados para o grande evento que está para explodir.

Diebus irae – “Dias de ira”, detalha a tragédia anunciada, a concretização da síndrome do mal permitida pela posse individual de armas, de uma grande quantidade armas. Não são mais os mass shooting, designação equivocada para ações individuais e isoladas, mas os extermínios seletivos, designação igualmente equivocada para classificar as explosões de ressentimento, de ódio e de desejo de morte, morte do outro, do diferente na cor, na origem e no biotipo.

Num estilo jornalístico seco e impessoal, é redigido por familiares e amigos de vítimas do Las Vegas shooting, Paradise, Nevada em 2017 e do Park Land high school shotting, Miami, Flórida 2018. Ativistas como tantas outros que ainda se mobilizam a partir das centenas de tiroteios anuais. Ver https://www.thetrace.org/ e dados atualizados em https://www.gunviolencearchive.org/

Quando a situação parece amainar, fica-se sabendo do Sileo diebus, dos Dias de reinicio, e da conexão fatal entre o macro e o micro.

População dos Estados Unidos em 2024: 335 milhões. Número aproximado de armas de fogo: 450 milhões. Após cada mass shotting importante a procura por armas aumenta. O mesmo aconteceu às vésperas das eleições presidenciais em 2024. Com a eleição de Trump, o pessoal anda mais sossegado. Provisoriamente, diz Cassandra.

Escrito inicialmente para o movimento pacifista norte-americano, Tenebris diebus foi friamente acolhido e em seguida desdenhado com respostas do tipo, “argumentos anti armamentismo têm que ser mais sutis”, “quem é esse cara para escrever sobre a cultura arraigada do povo norte-americano com relação à segunda emenda”? O espírito belicoso do império prevalece.

Então, requiscant in pace.

Antonio D. Cattani

oOo

O Um, de Antonio D. Cattani,
retrata um país terrível (e familiar)


Rogério Christofoletti

em: https://literaturapolicial.com/2018/01/03/o-um-de-antonio-d-cattani-retrata-um-pais-terrivel-e-familiar/

A afirmação está desgastada, mas ainda encontramos sentido nela: numa terra arrasada, qualquer tipo de planta pode crescer. Principalmente as oportunistas ervas daninhas. É num cenário como este que Antonio D. Cattani insere seu mais recente livro, O Um – inquérito parcial sobre o caso Ingo Ludder (Bestiário, 2017), novela criminal que dialoga muito com o contexto atual.

Na história, um líder carismático aproveita a descrença política, o ceticismo nos partidos e a frouxidão moral de parte da sociedade para se projetar como salvador da pátria. Ingo Ludder é magnético e arrebatador, e está cercado de estetas deslumbrados, financiadores espúrios e consultores abjetos. Alicerçado por um conjunto de vídeos enaltecedores, Ludder destila ódio, xenofobia, racismo e discriminação social, despontando como o avesso da política que está aí, estratégia que o catapulta para ser favorito a uma vaga no Senado Federal. Tudo corre bem para o homem que é apontado como O Um da organização Ordem e Verticalidade, mas, de repente, às vésperas da eleição, Ludder desaparece.

Em O Um, Antonio D. Cattani instiga o leitor a percorrer um conjunto esparso de depoimentos da investigação sobre esse sumiço para que reconstitua a narrativa original. Por isso, desfilam pelas páginas as versões parciais de personagens colaterais que testemunharam a ascensão daquela figura hipnotizante. Ganham fala a continuísta desimportante da produtora de vídeos, a pesquisadora oblíqua, a enfermeira oscilante… Com controle quase absoluto, o autor vai despejando pistas nas falas desses depoentes, aumentando a ansiedade do leitor que deseja enxergar a figura completa do quebra-cabeças. Como disse anteriormente, o controle do autor é quase absoluto, já que Cattani desliza em diversos momentos na prosódia de seus personagens, seja porque as falas ficam pouco críveis pelo formalismo das palavras, seja porque os discursos (que deveriam ser claramente distintos) não se impõem como unidades individuais. Quer dizer: a estratégia de tornar os documentos da investigação peças soltas e aparentemente difíceis de encaixar não funciona tão bem quanto se desejaria. Mais de uma vez, o autor tenta explicar algum artificialismo, atribuindo a uma escrivã interferências para uniformizar as falas, mas esse recurso soa mais como desculpa do que como um elemento deliberado.

Apesar disso, O Um é uma novela que merece atenção.

Nas páginas de Cattani, uma produtora de vídeos contribui para que o fenômeno desponte e, literalmente, o Brasil assiste e dá suporte ao surgimento de uma ameaça. Brasil, neste caso, é o videasta Jorge Brasil, joguinho de palavras que não é involuntário. O autor se diverte salpicando personagens na trama, cujos nomes são aliterações sobre nomes verdadeiros.

O leitor atento também poderá se divertir ao reconhecer figuras da política nacional desfilando mal-disfarçadas naquelas linhas…

No seu terço final, entra em cena o delegado Linder que não apenas atua para aglutinar as peças do jogo, mas dá humanidade e tensão narrativa à história. Não se trata de mais um herói típico de histórias criminais, mas de uma esperança legítima que o leitor acalenta por dezenas de páginas. A partir disso, O Um se impõe como uma narrativa que não se contenta apenas a reconstituir um crime, mas a destilar críticas à sociedade e àqueles que lhe dão seus contornos. É o que faz a melhor literatura policial: não se embevece com o sangue das vítimas, mas lança um olhar impiedoso para a cena que nos aterroriza.

O Um dialoga com o nazismo e com sua paródia tupiniquim, o integralismo. Mas também faz referências aos tempos de intolerância e ódio que estamos vivendo nos últimos anos. Não chega a revelar um país diferente, inusitado ou original. Pelo contrário, convida o leitor a reconhecer seu tempo presente, seu país, nossas omissões e escolhas mal feitas. É um momento sombrio e nefasto, terrivelmente familiar. Na telegráfica dedicatória no exemplar enviado, Cattani pergunta: E depois? Eu gostaria de saber responder, e de saber a que desdobramentos aquele inquérito parcial vai levar…

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O pequeno Hitler tupiniquim

Ernani Ssó

Publicado em: 6 de setembro de 2017 no Sul21

Li numa sentada O Um – Inquérito parcial sobre o caso Ingo Ludder, último romance do Antonio D. Cattani. Mas como nem a mim nem ao autor, pelo que conheço dele, interessa a saída mais fácil, distribuir exclamações e adjetivos, vamos com calma. No mais é torcer pra que eu diga coisa com coisa.

Cattani, professor na UFRGS, é mais conhecido, como autor e organizador, pelos livros ligados à sociologia, publicados no Bananão e Argentina, Colômbia, França, Inglaterra, Itália, México e Portugal. O mais badalado – fora da academia, entenda-se –talvez seja A riqueza desmistificada, editora Marcavisual, 2013. Acho que Ricos, podres de ricos, editora Tomo, recém-lançado, deveria ser best-seller: trata-se de uma síntese didática das pesquisas feitas nos últimos dez anos pelo Cattani sobre a acumulação de riqueza pelo pessoal que não faz outra coisa que acumular riqueza e se lixar pro resto da população, algo em torno de 99%.

Além das aulas e pesquisas, ele está metido em vários outros projetos, o que coloca a seguinte questão: onde ele arruma tempo pra escrever ficção? Ou não dorme ou tem uma equipe de elfos domésticos. Aposto na segunda opção, por mais realista.

Cattani começou em 2015 com L (editora Libretos), um romance policial intrincado, com um crime e um amor obscuros, e completamente fora das trilhas tradicionais do gênero. Preciso reler qualquer hora dessas pra ter certeza de que não fui enganado. Em 2016, ainda pela Libretos, lançou Sete dias, um folhetim que escreveu pra se divertir. Agora, em 2017, pela Bestiário, O Um.

Um é como chamam Ingo Ludder, uma espécie de Bolsonaro menos folclórico e brucutu, ou um Dória com o guarda-roupa e a seriedade de sair na imprensa do Sérgio Moro, ou um Trump sem a tagarelice errante e a cabeleira de comercial de Fanta. Apesar de ser um papagaio do pensamento da ultradireita, que gazeou as aulas de História, Ludder parece ter uns dois ou três neurônios a mais que Bolsonaro e, ao contrário do Dória, não age como um camelô mais engomadinho que o normal. Sem o espalhafato do Trump, Ludder tem algo de pastor, um magnetismo meio hitleriano. É bastante sinistro, ou muito sinistro, porque é evidente o vazio que ele é.

Ludder aparece sem um plano, meio como esses malucos que anunciam o fim do mundo pelas esquinas. Mas, diante da reação fanática das pessoas, logo grandes empresários resolvem investir nele. Assim, mesmo que ele diga detestar a política e os políticos, aceita concorrer a uma vaga de senador. Toda uma máquina de propaganda e segurança é montada em torno de Ludder.

Não é fácil falar do personagem. Não temos uma visão frontal dele. O romance é a junção de depoimentos à polícia de pessoas que estiveram envolvidas com Ludder. Quer dizer, o que sabemos é fragmentário, distorcido, com muitas lacunas. Por exemplo, há um segredo envolvendo antepassados de Ludder – talvez seja o caso do racista que esconde um avô negro ou algo assim. Essa visão, de longe e desfocada do personagem, atiça a curiosidade do leitor, mas senti falta de mais detalhes, detalhes de preferência contraditórios. De qualquer forma, dá pra se entrever Ingo Ludder e, através dele, entrever os vermes que fervilham nas entranhas do Bananão.

Outra coisa: as pessoas que fazem os depoimentos. Sabemos quem são, mesmo quando o depoimento é curto, ou incidental. Isso dá lastro ao romance. Sentirmos essas pessoas como reais, gente com quem até cruzamos algumas vezes, em contraste com a imagem distante de Ludder e empresários que ficam nas sombras, nos leva à sensação que temos diante do noticiário: o mundo real, o mundo concreto onde você e eu vivemos, é manipulado por entes incorpóreos, sem nome, sem endereço, sem um propósito claro além do poder pelo poder. Uma personagem se nega a falar de certo ponto pra frente porque sabe que topou com algo muito além de suas forças. Você não conhece esse medo, essa impotência?

Não vou falar do enredo porque isso o leitor tem de viver durante a leitura. Interessa notar que o romance nos dá alguns flagrantes do Bananão atual, com políticos que negam a política, com empresários não apenas corruptos como descarados, com uma Justiça sempre pronta a livrar a cara do pessoal da bufunfa, com marqueteiros macunaímas e gangues de desmiolados que querem resolver tudo no pau. Como se vê, Cattani encara um tema espinhoso, um tema que aparece de modo torto e impreciso na imprensa e que raramente dá as caras na literatura pátria. Bota raramente nisso. Apenas pelo tema O Um já mereceria destaque. Mas além disso Cattani dá uma boa trama, um punhado de personagens reais e o sumiço de Ludder, uma sequência hilária, porque muito provável em seu absurdo grotesco.

Dos romances do Cattani, este me parece o mais ambicioso e o melhor. Rápido, fluente, leve. Cattani começou tarde na ficção, mas começou com uma boa vantagem sobre outros iniciantes: ele conhece o mundo, conhece as pessoas. Sabe-se, sem isso, não há romance nem que a vaca tussa.

PS: É preciso falar da edição da Bestiário: simples, arejada, bonita – realmente profissional. É preciso falar também que não será fácil encontrar o livro, de modo que se deve insistir nas livrarias – pode ser que assim os livreiros descubram que existem autores que não fazem parte da manada de gringos com a pasmaceira de sempre. Quem tem pressa deve ir direto no site da editora.


Ernani Ssó é o escritor que veio do frio: nasceu em Bom Jesus, numa tarde de neve. Em 73, entrou pro jornalismo porque queria ser escritor. Saiu em 74 pelo mesmo motivo. Humor e imaginação são seus amuletos.