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Título: PERCURSO
ONDE NÃO HÁ
Autor: Denise
Freitas
FINALISTA
DO PRÊMIO AÇORIANOS DE LITERATURA
Dimensões: 14 x 21 cm
Páginas: 88
Gênero: Poesia
Ano: 2017
Onde não há facilidade
Ronald Augusto
Para o leitor, o poema se apresenta, numa primeira
aproximação, como que vertido em língua estranha, mas ao
mesmo tempo remotamente familiar. Na comunicação
poética, a imagem da leitura como algo rente ou similar
à operação tradutória se impõe de modo decisivo. A
comunicação poética pressupõe uma situação de embate com
a dimensão da intraduzibilidade, do hermetismo,
entendidos aqui como estilemas da condição de um limite
disciplinador imposto pelo jogo de relações requerido ao
poema. Mas tal dilema — a razoável impenetrabilidade da
poesia, essa tópica dos “portões fechados”, como refere
Denise Freitas em um poema do conjunto — se resolve, por
outro lado, no momento em que o leitor-poeta assume a
responsabilidade pela coautoria daquele texto por meio
de um gesto de interpretação quase livre, uma vez que a
estrutura recorrente do poema em alguma medida também
determina o palmilhar da leitura. Todo esse processo
resulta em uma espécie de tradução-leitura colaborativa
e envolvente, convertida, por fim, em transcriação (para
usar aqui um conceito de Haroldo de Campos). Ao fim e ao
cabo — e para tirar melhor proveito de sua fruição —, o
leitor, diante dos “portões fechados” da tapeçaria de
sentidos de Percurso onde não há, deve deliberar se vai
limpar os pés das próprias pressuposições na entrada ou
na saída do jogo interpretativo.
É desde esse ponto de vista que me disponho a ler
Percurso onde não há, terceiro conjunto de poemas de
Denise Freitas. Com efeito, a menção lateral que faço a
um possível tônus hermético a informar a linguagem da
poeta não pretende encerrar o assunto a respeito.
Inclusive porque o atributo, o mais das vezes, serve
antes como classificação pejorativa do que como valência
poética a ser considerada a sério. Poetas de linhagem mallarmaica como Denise Freitas, cujos poemas empreendem
questionamentos sensíveis sobre os limites da expressão
verbal, impondo-lhes a suspeição relativamente ao objeto
resultante da nomeação, são advertidos tanto pelo seu
aparente formalismo, quanto pela obscuridade desafiadora
de seus escritos; nessas ocasiões o bom senso se fecha
na retranca conservadora da inteligibilidade ou da
comiseração com os limites de repertório de um leitor
que, por pouco, não é considerado como cliente.
Todo poema é forma, por isso mesmo trata-se de uma
redundância preconceituosa acusar o poeta de formalista.
E todo poema é hermético, primeiro porque seu
significado é irredutível àquele leitor que se debruça
sobre ele, e, segundo porque tanto emissor quanto
receptor, que estabelecem um contato por meio desse
canal ambíguo (o poema) também são ambíguos, isto é,
eles são afetados pela linguagem de que se servem quando
inventam esse singular ato de comunicação incomunicável.
O simbolismo lato sensu da poesia de Denise Freitas
esfuma os contornos do mundo em vista da pureza do
impreciso e do indeterminado. Seu esforço discursivo se
presentifica na conquista da sugestão, na alusão que se
constela na forma dúctil do poema.
Esse toldo alarga a sombra
das cores que não bastam.
[...]
Portanto, mais do que insistir na perspectiva de um
esforçado hermetismo contido entre as capas de Percurso
onde não há, me parece de maior interesse convidar o
leitor a assumir sua condição não digo de hermeneuta (o
que seria previsível), mas de hermenauta (o que é mais
produtivo para a economia poética), pois talvez desse
modo o leitor — como que num périplo — não tema o
desafio proposto por Denise Freitas e consiga dizer com
a poeta um verso como o que segue: “razão do abismo em
que me alço”. Eis aí uma poderosa metáfora para os
sentidos cambiantes dos poemas de Percurso onde não há.
Aliás, já no título da obra nos deparamos com essa forma
de fracasso exitoso presente tanto no que toca ao dizer
poético, como no que toca à sua recepção, pois este
“abolido bibelô de inanição sonora” (Stéphane Mallarmé
dixit) quando cristalizado em seu relato, isto é, no
poema feito e grafado na folha branca, se redime da
suposta condição de fracasso comunicativo. O sentido se
converte numa conquista e não em algo que o poeta
deposita no texto como que num gesto de leniência com o
leitor preguiçoso. Em outras palavras, o sentido como
salvaguarda, esse lastro lançado à realidade através do
poema que se pretende fiel ao objeto. Quanto a isso fico
com Jacques Derrida que, expropriando Walter Benjamin,
escreve: “Mas o que ‘diz’ uma obra literária (Dichtung)?
O que ela comunica? Muito pouco a quem a compreende. O
que ela tem de essencial não é comunicação, não é
enunciação”.
Denise Freitas dissipa os significados (“selos de
línguas controversas”) através de uma abreviação e de um
senso de lacunas cujos significantes ajustados, às
vezes, ao constructo métrico e ao verso longo de ritmo
distenso e similar ao andamento da prosa (bases sobre as
quais a poesia pode ou pôde plasmar-se), e, às vezes, à
música sem-versista da fratura e da sutil percepção de
espacialização (estilemas da contemporaneidade)
recompõem arranjos semânticos pelas interações de
proximidade e contraste estabelecidas. A poeta sabe,
felizmente, que tudo se passa de modo inapelável na
superfície atritante da linguagem. O hermenauta-modelo
de Percurso onde não há educa os seus cinco sentidos num
pervagar impreciso por sobre o abismo pelaginoso do
discurso poético de Denise Freitas que através de sua
vontade de fazer linguagem acaba por nos comunicar
estruturas significantes.
Em Percurso onde não há percebe-se a recorrência de uma
constelação de palavras-signos, tais como “simulação”,
“disfarce”, “equívoco”, “rastro”, “abismo”. Essas
verdadeiras metáforas (só por desatenção poderíamos
situá-las na categoria de vocábulos) evocam uma sorte de
poética da desfiguração (um enublar referencial), da
recusa à naturalidade da linguagem e às regras públicas
do discurso sobre o qual o verismo do mundo é assentado.
A poeta, com agudeza “dulce ductilíssima”, leva a efeito
o pouco e o opaco constitutivos do poema enquanto
instância negativa sempre prestes a dizer que “medida
nenhuma rutila”. Percurso onde não há instaura sua
cadência “no rastro do abismo” branco da página onde o
sopro de Denise Freitas se perfaz sem transigir com o
tolerável e o fácil.
1 Ronald Augusto é poeta, músico, letrista e crítico de
poesia. É autor de, entre outros, Confissões Aplicadas
(2004), Cair de Costas (2012), Decupagens Assim (2012),
Empresto do Visitante (2013) e Nem raro nem claro
(2015). Dá expediente no blog
www.poesia-pau.blogspot.com e escreve quinzenalmente no
http://www.sul21.com.br/jornal/ |