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Título: ESCRITA
CRIATIVA
Autor: Bernardo
Bueno (org)
Dimensões: 14 x 21 cm
Páginas: 218
Gênero: Conto, Poesia
Ano: 2018
Escrever é dar voz
Bernardo Bueno
Coordenador do curso de graduação
em Escrita Criativa da PUCRS
Eu escrevo aqui como um de nós – como um colega, como alguém
que compartilha um caminho, como alguém que, ao redor da
fogueira, acena positivamente a cabeça, em silêncio, como se
dissesse Eu também, porque estamos todos aqui, afinal,
compartilhando espaços, compartilhando um tempo,
compartilhando essa escolha de escrever, de aprender a
escrever, de escrever simplesmente, de escrever como quem
respira, ou como quem experimenta uma comida que nunca
experimentou antes, ou como quem pula de paraquedas, como
quem anda de montanha russa, como quem se esconde dos
monstros, debaixo das cobertas, uma lanterna em mãos, com
poucas certezas a não ser de que, aqui, entre as palavras,
eu encontro um pouco de luz e me abrigo das sombras
assustadoras e do som da tempestade lá fora. Ou seja: eu não
sou eu. Aqui tomo a liberdade de – que audácia – falar por
nós.
Não vou falar sobre as razões para escrever. Elas são muitas
e muito pessoais: fama, admiração, prestígio, riqueza,
realização, necessidade, experimentação, expressão,
desabafo, respiração – não necessariamente nessa ordem, e
não necessariamente qualquer uma dessas razões. Escrevo por
que sim. Acho que agora, nesse momento, nos encontramos
aqui, dentro de um livro, presos no âmbar, nossas impressões
digitais gravadas, talvez por séculos, juntas, como um
retrato no tempo, porque é isso que um livro é, veja só: um
retrato no tempo, um registro histórico, por que não, de um
momento em que algumas dezenas de pessoas se juntaram e
disseram Vamos fazer um livro, e todo mundo disse Sim, e
aqui estamos.
Quando eu escrevo, eu me preocupo: penso se meu texto será
bem recebido, se será compreendido, se meus colegas de
profissão vão me admirar ou falar mal de mim pelas costas e,
também, se terei boas resenhas, se ganharei algum concurso,
se vou conseguir uma vaga como professor, ou se isso tudo
vai render algum dinheiro. Ou se alguma coisa dessas vai
acontecer, qualquer uma, porque eu preciso desesperadamente
de algum encorajamento, de alguma confirmação de que estou
fazendo a coisa certa em acreditar que eu posso deixar
alguma marca nesse mundo de sete bilhões de pessoas,
possivelmente mais do que isso. Eu me preocupo com tudo isso
porque afinal de contas nós temos mesmo é o medo da morte,
de passar por aqui, viver alguns anos e voltar ao
esquecimento. Mas pelo menos isso eu já resolvi: nós nos
juntamos e fizemos um livro, um livro de papel com uma
versão eletrônica, veja só, nós estamos cobrindo todas as
bases. Em algum lugar nas bibliotecas e nas redes
eletrônicas nós vamos viver por um longo tempo. Talvez não
eternamente, porque quem é que pode dizer essas coisas, mas
um longo tempo com certeza, mais tempo do que o tempo que
temos fisicamente, como seres bípedes com polegares
opositores que apenas ontem, numa escala cósmica, inventaram
a escrita.
O que me falta é justamente essa perspectiva: de que fama,
dinheiro e prestígio duram pouco ou duram muito, isso não se
decide tão imediatamente como gostaríamos, mas é melhor
assim. Por exemplo: em tempos sombrios a literatura pode dar
algum consolo, alguma luz, alguma esperança e, em tempos
sombrios, se um dia eles vierem, nós vamos continuar vivendo
– nós, as autoras e autores – em alguma biblioteca e algum
canto da rede de computadores. Ou melhor, o que eu quero
dizer é que não consigo ter essa noção muito bem, porque
neste instante tudo parece depender de um texto, no qual eu
tenho trabalhado há semanas, ou meses, ou anos, e que
gostaria que outras pessoas lessem e acenassem com as
cabeças, em suas casas, em suas camas, num ônibus, numa
livraria ou sorrateiramente numa sala de aula, e eu gostaria
que alguém lesse esse tal texto, fruto do meu trabalho, da
minha intuição e das técnicas que eu consegui colecionar
desde que decidi começar a escrever; que alguém lesse e
acenasse com a cabeça, silenciosamente, como se dissesse Eu
também. Uma forma de profecia, como queria Ginsberg, poeta
beat, que dizia que profecia não era prever onde a bomba vai
cair durante a próxima guerra, mas sim aquele momento mágico
em que alguém, cem anos no futuro, lê um poema e sabe
exatamente o que eu senti quando escrevi. Uma conexão.
Outro exemplo: poucos esforços foram feitos para preservar
os vencedores das Olimpíadas na Grécia Antiga, e nós só
sabemos os nomes de alguns dos campeões do século V a.C.
porque um certo oficial romano os escreveu no verso de um
relatório financeiro, que por sua vez sobreviveu até hoje.
Sócrates, conversando com Fedro, dizia que a escrita dava
apenas a ilusão de verdade, porque confiar nos registros
escritos significava parar de exercitar a memória, parar de
confiar no próprio julgamento, no diálogo. Ora, sabemos o
quanto a escrita é importante para preservar a memória, para
afastar o esquecimento e a ignorância – desde que ela nunca
se desconecte do coração, da crítica, da reflexão.
Bibliotecas – e museus – queimam muito facilmente. Mas nós
somos, hoje, muitos, e os arquivos são muito mais facilmente
reproduzidos e compartilhados, e muito mais de nós sabem ler
e escrever e criar do que se sabia na época de Alexandria. O
que eu queria dizer, quando comecei esse desabafo, esse
monólogo interior, ou fluxo de consciência, como ensinam os
professores de Escrita Criativa, é que eu penso muito em mim
mesmo quando escrevo. Muito em como vou me sentir e nas
consequências que isso vai ter pra mim e pouco na
importância, no poder e na responsabilidade que eu tenho em
escrever. Eu preciso lembrar que meu texto, no qual eu
trabalhei por semanas ou meses ou anos, pode ser o único
registro que vai sobrar desse momento, desse mês, desse
lugar, e meu ponto de vista, minhas palavras, minha voz,
podem ser uma luz para os séculos à frente. Ou seja: eu sou
necessário, mesmo que não pense nisso.
O esforço de calar, hoje, é consideravelmente maior do que
era antes, a não ser que ninguém mais saiba escrever, criar
ou pensar. Então não basta saber fazer: eu preciso preservar
esse conhecimento, essa habilidade, senão tudo vira fumaça.
Nada é garantido, numa escala cósmica.
Escrever é dar voz – a mim e aos outros. Toda escrita existe
em diálogo, toda voz ecoa e ressoa em outras, e minha voz
pode inspirar alguém. A diversidade de vozes, temas,
estilos, e técnicas é parte do nosso legado, uma pequena
parte da história da humanidade e da história da arte, uma
oferenda que deixamos, aqui, às gerações futuras. Se escrevi
efusivamente, peço desculpas, mas é que as vozes que estão
juntas falam mais alto, porque a polifonia – e a harmonia –
são os recursos musicais mais belos e mais fortes, e é
justamente isso que celebramos aqui.
Porto Alegre, outubro de 2018.
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