Publicado pela primeira vez em
1845, o poema "The raven", de Edgar Allan Poe, é um dos mais
famosos da língua inglesa e um dos mais traduzidos para
diversos idiomas, a despeito — ou justamente por conta — de
seu intrincado esquema compositivo, representando um
verdadeiro desafio para seus tradutores. Ainda no século
XIX, a fila das traduções foi puxada por poetas do quilate
de Charles Baudelaire e Stéphane Mallarmé, que optaram por
transcrevê-lo em prosa para o francês.
Em língua portuguesa não foi
diferente: dois grandes escritores, Machado de Assis e
Fernando Pessoa, estiveram entre aqueles que procuraram
verter os malabarismos verbais de Poe para nosso idioma — o
primeiro adotando uma organização estrófica polimétrica, já
o segundo mantendo-se mais próximo do modelo original. Ao
final da década de 1990, o prestigiado e saudoso tradutor
Ivo Barroso organizou O corvo e suas traduções,
reunindo em livro algumas das versões mais representativas
de "The raven" em português e francês, às quais se somariam
outras na segunda edição, publicada em 2000. Nesse livro,
Barroso exaltava a tradução de Milton Amado, jornalista
mineiro falecido em 1974, como a mais bem-sucedida em nossa
língua.
E minha relação com a funesta
ave de Poe também não vem de agora. Meu segundo livro, A
ave Lúcifer (Patuá, 2000), fecha com uma paródia estrofe
a estrofe de "The raven", intitulada "A rola" e cuja
inspiração surgira da leitura de "O urubu", de Guilherme
Gontijo Flores e Rodrigo Gonçalves, versão definida pelos
dois autores como uma "tradução exu". Foi por conta de tal
histórico e de meu interesse pelas formas tradicionais da
poesia japonesa que, numa interação pelo Instagram, o amigo
Luís Fernando Neis Blashke sugeriu-me uma tradução de "The
raven" em que cada estrofe do original fosse reduzida a um
haiku. Gostei tanto do desafio que resolvi aprimorá-lo:
transformar o poema de Poe num renga, vertendo as
estrofes na forma do tanka. O resultado foi tampouco
uma tradução quanto um renga, pois, para levar a cabo
a empreitada, tive de realizar diversas adaptações.
O renga é uma forma
poética japonesa do século XIV, cujo nome pode ser traduzido
como "poemas encadeados". Tratava-se, originalmente, de um
passatempo aristocrático e de caráter coletivo, no qual dois
ou mais poetas se revezavam no encadeamento de diversos
tanka, forma tradicional da poética nipônica antes
conhecida como waka (literalmente, "poesia
japonesa"), composta por duas linhas: a primeira (o kami)
constituída por três segmentos de, respectivamente, 5, 7 e 5
unidades fonéticas; a segunda (o shimo), por dois
segmentos de 7 unidades fonéticas. A origem do haiku está na
linha de abertura do renga, chamada de hokku.
Adaptado à versificação ocidental, o tanka pode ser
representado por uma estrofe de 5-7-5 sílabas poéticas,
seguido por um dístico em versos heptassílabos. Um dos
exemplos mais célebres de renga é o de Três poetas
em Minase, composto pelo mestre Sôgi e seus discípulos
Shôhaku e Sôcho no século XV.
Como já dito, a rigor, o poema
contido neste livro não pode ser considerado um renga,
pois, deste, aproveitei apenas a estrutura, fazendo
adaptações significativas. Em primeiro lugar, trata-se de
uma composição individual. Em segundo, embora a poesia
tradicional japonesa seja escrita em versos brancos, tive de
adotar um esquema de rimas bastante restrito para dar conta
do papel decisivo assumido por tal recurso estilístico no
original — para constar, o esquema adotado foi aba/bB (em
que b é sempre uma rima em -ais, -ás, -az ou -ai e B um
verso terminado com "mais"). Finalmente, dada a natureza
narrativa do poema-fonte, outra característica do renga
que tive de abandonar foi a descontinuidade sintática entre
a primeira e a segunda linhas do tanka. Trata-se,
portanto, de um renga abastardado.
É preciso ainda destacar que
nada há de inovador na conversão de "The raven" em formas
poéticas estranhas à sua composição. Em 1917, por exemplo, o
parnasiano Emílio de Menezes já havia transformado as
estrofes do poema em 18 sonetos.
Além do mais, meu poema também
não pode ser considerado uma tradução no sentido exigente do
termo, pois, devido ao caráter sintético da forma adotada,
vários elementos temáticos do original precisaram ser
suprimidos e até mesmo modificados. Ainda assim, tenho a
pretensão de haver preservado o essencial do poema de Poe,
tendo-lhe destilado a medula. O resultado desta empreitada
talvez esteja mais próximo de um ornitorrinco do que de um
corvo, pois, se tem a estrutura de um renga, não o é
de fato, e, mesmo levando todo o jeito de uma tradução de "The
raven", não chega a sê-lo.